Projeto Lerelena

Projeto Lerelena

Em homenagem ao centenário do nascimento da poeta paranaense Helena Kolody iniciamos o Projeto Lerelena.

Nove poetisas do sul brasileiro se propoem ao desafio de ler relendo (ler helena) e interInvencionar. A proposta é confluir e colidir a nossa letra com a dela, helena. As interInvenções serão sempre sensibilizadas por poemas seus. Nesta primeira etapa partiremos de nove poemas que serão postados a cada sexta-feira.


Miragem no caminho (Helena Kolody)

Perdeu-se em nada,

caminhou sozinho,
a perseguir um grande sonho louco.

(E a felicidade
era aquele pouco
que desprezou ao longo do caminho.)



sábado, 21 de julho de 2012

CAMOMILA COM BAUNILHA

CAMOMILA COM BAUNILHA


Anali Mattar


Saía de casa apressada, "merda de vida, onde é que tá o Caio?”
— Caiooooo! Ah, chupando o chiclete chechelento que tava em cima da máquina, a uma hora dessa? Caio... já pro carro.
 No possante azul tudo mudava, colocava os óculos brancos que tinha comprado de uma amiga, ligava a fita favorita quase sempre na mesma música e desligava.

Girls just wanna have fun now

Oh oh girls justa wanna have...

Seu tique alegre era gritar toda vez que passava no sinal amarelo. Um dia Benta tinha lhe ensinado o segredo da felicidade das meninas. Bater a mão no teto do carro toda vez que passavam num sinal amarelo. E se isso acontecesse três vezes na semana alguém se declararia para ela em menos de três meses.
Quando aprendeu a dirigir decidiu que em três meses muita coisa podia acontecer e que as chances de encontrar o sinal amarelo três  vezes durante uma semana eram mínimas, então mudou. Agora daria um berro e nesse mesmo dia viraria o máximo de esquinas possíveis, já que foi numa esquina que os personagens de um filme tinham se encontrado.
O pior é que Caio já havia lhe dito que muitas vezes passavam no amarelo e ela não berrava, será que era daltônica? “claro que não, o vermelho é vermelho, o verde é verde, se bem que às vezes a Benta diz que eu tô de azul e eu tô de verde, merda de vida”.
Saía do carro e sempre que ia de saia, a saia amassava ou aquela camisa branca de algodão, que o cinto amarrotava “inventam tanta coisa, porque não inventaram ainda um desamassador automático, ou um cinto que não amassasse” a camisa que não amassa já sabia que existia, mas nunca tinha dinheiro quando via uma, merda de vida.
Olhava pro banco de trás... “o Caio? Ah, claro, já larguei”. Pendurava a bolsa sempre crua e de alça longa no ombro. A agenda na mão. Caminhava leve e doce. Pensava no sorriso de Caio pela manhã, no batom que queria comprar, nos buracos do asfalto, na lona do circo que estava na cidade, do beijo da irmã no namorado, namorado, namorado a palavra lhe perseguia, pensava porque sempre perdia o amarelo “quem sabe se eu só vestir amarelo, não amarelo é luz, luz, calor, sol, praia, verão, biquíni, eu odeio exercício, mas um ano sem sexo. Sem sexo seria uma loucura um ser com cem sexos, mulher, homem, bi, homo, o resto não posso imaginar”.
— Marga o Caio ligou e disse pra você não esquecer que hoje ele tem futebol.
   Ah, e a Bina ligou e perguntou quem é que vai organizar a festa do sábado, ela deixou o número.
— Não Bina eu não vou, eu tô cansada dessas festas, vo alugá um filme. Como quem? a Vera ela sempre tá disposta, afinal é o tema dela.
Assinou três ou quatro papéis sem prestar atenção na cor, escolheu os tecidos para os sofás novos. Sentada em sua cadeira olhava a janela de seu escritório. Era sempre assim, a cor verde musgo do prédio vizinho lembrava um vestido última moda todo emborrachado que o pai um dia de viagem no Rio de Janeiro trouxera para a mãe. A mãe chamava aquela cor de burro quando foge, mas para ela, Marga, aquilo era verde musgo. O pai devolveu o vestido e trocou por umas blusas de velha bordada. Imaginava-se na vitrine de uma butique chique no Rio com aquele vestido, numa vida de manequim.
Saía andando quando o interfone tocava e a secretária dizia que um cliente estava entrando. O cliente entrava, ela sorria, comprimentavam-se, oferecia a cadeira e um chá. Sempre odiou o cheiro de café, a primeira coisa que deixa claro com as secretárias “é que aqui não tem café”. O cliente começava a falar e o tique asfixiático começava. Enquanto contava seu caso, começava a se sentir sufocada, tossia, desamarrava a bota, tirava o cachecol, abria um pouco a janela, e aí entrava o chá e o seu cheiro parecia um remédio, tudo passava e a história sempre nessa hora mudava de rumo, parecia se ajeitar.
Naquele dia era uma mulher da sua idade que queria o divórcio, seu pai era dono de uma rede de hotéis que já haviam sido divididos entre os três filhos, casada a apenas três meses, o marido a maltratava desde de que soubera que não haviam casado em comunhão total de bens. “aquela era boa, aonde ela tinha arranjado um tipo daquele?”
— Ele é um primo de segundo grau, nós nos conhecemos a vida toda, nunca ia imaginar que queria dar o golpe do baú.
Aquela palavra baú, como toda a palavra baú, era como se fosse o segredo do ativar de um botão que fazia aparecer do nada, do nada não, da palavra baú, uma caixa velha de madeira pesada que morava na cômoda do quarto da avó. O baú, caixa, história, era o lugar onde ela guardava as fotos. O pai vestido de menina, o primo já morto, a filha bebê, a irmã em viagem, uma rosa solitária, abraços e beijos da turma toda, Marga magricela. “e pra completar ela tá grávida, nossa aonde será que ela comprou esse lenço vermelho, não é daqui não”.
O vermelho forte. “Llorona, llorona” a música lhe perseguia, assistia insistentemente a cena da festa, aquela em que Frida dança com outra mulher. “Mulher. Mulher palavra, ser. A minha cabeça não é de mulher, é impossível que mais alguém sinta isso. Bela mancada ser mulher. O mundo parece bem resolvido, se pelo menos a Benta não existisse não teria um parâmetro, aceitaria minhas nóias como um sapato novo que se ganha quando é adolescente. Mas a Benta não dá, é a mulher perfeita. Cozinha, trabalha e trepa  e agora ainda vai pari! Merda de vida.”
Sentia uma vontade louca de sair dançando tango pela rua, ou de tirar a roupa só para ver o que aconteceria. Será que iria presa? Ficava pensando no lugar e momento perfeito para se desnudar, a imagem de Caio sempre a acordava.
— Chegou mais cedo? Viu o jogo? Joguei bem?
As palavras entre os dois era um braço que laçava o menino e lhe segurava forte, era a mão que abria a porta do carro e lhe colocava o cinto, era o beijo dado todo dia nesse mesmo momento, o momento do beijo, e essa era a palavra mais sincera e esperada de todo dia, o beijo.
— Vamo no cinema hoje?
— Amanhã, hoje não dá, tá?
As luzes atrapalhavam o pensar e nada e tudo que se ouvia era a mudeza de um querer “as palavras substanciais estão no chão, no mar, estão em você, in you, in you, in you”
— O sinal amarelo, berra!
Estruendo mudo, que coisa idiota, berrar pra quê?”
— Esquece Caio.
— Uma esquina, duas esquinas, vira mais uma vai só pra brincar.
 Ligou a fita na música. Os dois cantaram a música toda, o carro parado na frente da venda. Alguém bateu no vidro. Ele olhou uma moça de lenço vermelho. Ela olhou e pensou na cena do filme “que cheiro de chá”.